sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

ainda somos os mesmos e vivemos.

Ao contrário do que era costume do lugar, naquele dia não apagaram os vestígios de que houve um anterior àquele. E, ao contrário do que era mais que costume, era tradição, ela estava ali ... e não se atrasara. Girava a maçaneta tão devagar, desejava ouvir passos subindo as escadas, esperava ainda que alguém subisse e fizesse isso por ela. Ninguém veio. Quando o sol se esconde atrás de uma nuvem e não esquenta a água, é melhor pular de vez, é o que dizem. Ela pulou. Era a mesma sensação, o frio fazia parecer que em volta tudo era alfinetes a espetá-la, e era. Sentou-se no palquinho como se fosse um vulcão extinto e dali, olhando pra frente, ela enxergava todo um passado. E com os seis sentidos aguçados pelo vazio, ela foi catando lembranças, como um cego tateia no escuro - se houvesse luz, ela tatearia ainda assim. Podia ouvir ao longe os burburinhos, as canções - marinheeirosó - as fofoquinhas, conversas, eis que os nervos se alteram e ela ouve gritos! Fumaça ... era o único cheiro presente. E, você sabem o que dizem, onde há fumaça ... então, ela foi queimando fotos, flores, papéis e a si mesma. Afinal, havia ela em tudo que estava ali e, mais ainda, no que permanecia ausente. Num ato infantil, porém, milimetricamente calculado com a astúcia dos adultos bobos, ela se arrependeu, recolheu os cacos e as cinzas e guardou de volta no peito. E os tais passos, que ela nem desejava mais ouvir, estavam ali. Cada vez mais alto, mais rápido, mais próximos. As pessoas iam entrando e, como se aquilo fosse só uma sala, cada qual procurava seu lugar, sentavam-se e tocavam a vida como sempre fazem os que enxergam com os olhos. Absurdo! Pra eles, repito, era só uma sala. Pra ela, na parede da memória, não há quadro a doer mais.

2 comentários:

Victor Moraes, disse...

e essa lembrança é o quadro que dói mais!
nem todo mundo ali pôde enxergar a quarta dimensão, ver o que não se pode tocar. mas se um só pode ver isso, já é o bastante pra que o que passou continue existindo em algum lugar que chamam de "passado". essa caixa onde coisas se repetem e não podemos voltar pra mudar.
Rai, que texto lindo....nos detalhes...tudo! é incrível como me emocionei agora. senti o chão frio do 'palquinho', até o cheiro de gás [aqueeele povo tentando nos matar...rs].
será que esse foi como os outros?
ou como nossos pais...





e eu te amo muito.

Raisa Bastos y Rodrigues disse...

De toda a sorte que h� no mundo,
eu tive a maior. Tive voc� enxergando
tudo que era invisivel junto comigo
e me apontado o que eu, cega de raiva,
n�o conseguia ver. Voc� sempre me apontando a f�. E � por isso que fa�o valer tudo que passou, por isso que guardo comigo tudo que vivemos. Por voc� por todos os outros ... nossas estrelas e guias, pelos amigos que cativamos e pelo primeiro peda�o de bolo e toodo o aprendizado que veio anexo a ele.


Lembrei do cheiro de g�s enquanto escrevia ... eles falharam, amor, como sempre /risos ao tom de miss Prudente da Costa.


e eu te amo muito.

Lilith

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25 anos de sol em leão. queria voltar ao tempo em que era cool escrever letra de música no perfil / cozinha, escreve, pratica boxe e é jornalista nas horas vagas / acha que "transtornada" é um nome muito bacana para quem tem TDAH, eu tenho.